Autor: admin
Campo Largo – Paraná
Os caçadores do tesouro perdido
Aos 30 anos acho que a gente pode olhar para trás com certa grandeza e para frente com muita dúvida. É ali que encontramos algumas respostas e seguimos abrindo portas de infindáveis perguntas. É a linha reta e pouco duradora de uma gangorra. O que foi a vida até aqui? E o que tem sido esbanjado em mera existência irresponsável? Afinal, qual o real compromisso humano com a vida? – me perguntei. Liguei para alguns amigos, arrumamos as cargueiras e fomos caçar respostas como um tesouro perdido num mapa pontilhado por trilhos.
Deixamos Campos Novos no escuro, às 5h37min de sábado. Feriadão de finados. Iríamos descobrir se estávamos de fato vivos ou apenas rastejando como zumbis famintos pela seção de produtos supérfluos de um supermercado urbano. O destino? Uma cidadezinha interiorana e pacata fincada nos rincões verdes do Rio Grande do Sul. Depois de dois pneus furados e um caso de amor com a borracharia “Siga bem caminhoneiro”, chegamos a Guaporé, o ponto de partida da saga. Todos prontos para cruzar, a pé, os 50 quilômetros da Ferrovia do Trigo que conduzem ao distrito acanhado e rural de Muçum.
Na companhia harmônica de sol brando e nuvens protetoras, seguimos com nossas mochilas, trabalhando os tornozelos no solo de pedras. Um caminho digno de provérbios que inspiram luta, força e fé além de religiões. Éramos um quinteto de ateus e católicos contemplando a brisa que roçava as folhagens; compondo uma orquestra com o atrito dos pedregulhos, o eco dos túneis e a grave buzina da vagoneta de manutenção que deslizava por aquelas bandas. Cantarolávamos a capella as músicas de caubóis americanos, inspirando a trilha com o vozerão de Johnny Cash e seus comparsas. Sentíamos a liberdade fervilhar no sangue. Livres.
Cercados por paisagens arrebatadoras e grandes pontilhões vazados que conectam as pontas de seus precipícios, desafiamos a vertigem e as rajadas de vento que teimavam nos derrubar. Passo a passo, dormente por dormente, concentrados somente em si, íamos deixando para trás a existência cancerígena e fútil. Dávamos novo fôlego à vida, saindo de um ciclo social moribundo, peregrinando em linha reta para o abraço na vida em uma estrada sem fim. Desdenhamos dos peitos e bundas explodindo no uso pobre do Instagram; abandonamos as maquiagens e as fitas cafonas de camarote; banimos nossas almas de toda exposição barata de corpos que vagam mortos e cegos, cultivando músculos, celebridades instantâneas, jogadores de futebol e cantores de músicas deploráveis. Reinávamos soberanos sobre o resto da sociedade vazia. A fantasia, a ilusão que chamavam de mundo, agora aparecia moída como carniça animal numa estrada de ferro; dilacerada por uma implacável locomotiva de vida.
Anoiteceu e acampamos à beira de um imponente viaduto. Dava de ouvir uma cachoeira ao fundo e o trem passar como trovoada terrestre na madrugada. Tomamos algumas cervejas, fritamos linguiças e fomos dormir. Escrevi:
“Um lugar que não me canso de desafiar. Um lugar que me agiganta e, ao mesmo tempo diz: “cara, tu não és nada”. Contraditória e massacrante, a Ferrovia do Trigo é uma mãe daquela que te deixa viver. É um lugar que me põe distante de tudo que é fútil, de tudo que só me consome; me afasta da vaidade e me apresenta ao meu verdadeiro eu. Sou Marcos Holtz, deitado numa barraca com seus melhores amigos às 22 horas de sábado, num feriadão. Os jovens estão sujando seus corpos por aí. Os sapos não param de coaxar lá fora, talvez eu seja um deles eternamente. O SAPO.”
De manhã a neblina acobertava o vale. Atravessamos a ponte e marchamos por mais intermináveis túneis com dois quilômetros de puro breu. Passamos por paredões de rochas cortadas e perto do meio dia acendemos uma fogueira com vista para o Viaduto do Exército, a segunda mais alta ponte ferroviária do mundo. Nos lambuzamos de atum em lata e descemos por uma estrada de barro. Metemos os pés numa corredeira fria e pedimos uma carona até o começo da Avenida Santa Lúcia. O “x” do nosso mapa. Um tesouro em forma de família numa casa simples e sem cercado.
Em Muçum mora o nosso amigo Marciano, o filho homem dos Brandão. Quando chegamos exaustos, a cerveja gelada brilhava nos olhos e três galos fortes nos esperavam depenados e recheados com o melhor debulho colonial. À noite teríamos uma janta, ou melhor, uma festa. A família reunida de novo. Naquele dia não choveu e também não fez sol, mas não precisávamos de nenhum arco-íris. O pote de ouro estava no fim dos trilhos. O tesouro dos cinco caçadores de vida estava ali, estampado no sorriso puro e guardado no abraço caloroso e sincero da Família Brandão.
Curitiba – Paraná
Parque Nacional de Superagüi – Paranaguá – PR
A falha perfeita no quintal do Guartelá
Tibagi, no interior do Paraná, é a modesta guardiã de ricas histórias, lendas misteriosas e de uma das melhores aventuras do mundo.
A gente costuma admirar o longínquo, “a grama do vizinho”. A gente costuma, porque somos preguiçosos e acomodados por natureza, a deixar pra depois as coisas que nos pertencem mais, as que estão do nosso lado e “não vemos”. É quase cultural assim como o carinho de mãe que desprezamos por tantas e tantas vezes, seja por vergonha pública ou por mera “falta de tempo” pra velha.
A verdade é que a ingratidão crônica nasce como uma flor feia em cada um de nós. E enquanto regamos, dando vida a esse jardim pálido, matamos nossas próprias raízes. Quando queremos dizer que algo é muito bom, dizemos: “isso é padrão gringo”. Quando pensamos em Carnaval, sonhamos com Salvador ou com o Rio de Janeiro; Carnaval em Tibagi? Onde diabos fica Tibagi? Aventura é no Atacama, na Nova Zelândia; arvorismo em Tibagi? Cara, onde fica Tibagi?
Senta aqui, meu jovem. Eu vou lhe contar.
A 200 quilômetros de Curitiba (PR), na região que literalmente rasga os Campos Gerais, está o portal de entrada do Parque Estadual do Guartelá. É a morada de uma garganta gigantesca que se estende por 30km e exibe penhascos com até 450 metros de profundidade: o Cânion Guartelá. O sexto mais longo do mundo e o maior do Brasil, morada do Rio Yapó, legado santificado de seus ancestrais indígenas.
Para conhecer esse pedaço lindo do quintal sulista, é preciso apenas ter vontade. A entrada é gratuita, e uma trilha autoguiada (5km), muito bem conservada e com vários pontos de água potável, leva o coração aventureiro pelas entranhas do parque que é tela para inscrições rupestres deixadas ali. Aproximadamente uma hora caminhando por quedas d’água e panelões naturais para banho, até o ponto final no púlpito rochoso de onde se pode admirar a cachoeira que escorre rente à “Ponte de Pedra” construída pela mãe de todas as engenharias: a Natureza.
A mais que obrigatória PARADA DO GUARTELÁ
Às margens da estrada, de frente para o trevo de acesso ao parque, está a Parada do Guartelá. Uma lanchonete que serve almoços rancheiros especiais e, claro, um cardápio que atiça a gula dos exploradores de plantão. Temperos por conta de atividades como rapel, cascading, rafting, trilhas longas, e cavalgadas.
Por lá atendem o simpático casal Fredy e Renata, e seu time sensacional que joga bem na cozinha, com os panelões fervilhantes com cheiro de roça, pilotados por Josefina; e nas cordas bem amarradas pelo instrutor que anda mais pelas paredes que pelo chão, o Piré. Perto dali, seguindo por uma estradinha de barro ao interior do interior, o Camping da Maria, com amplo terreno sombreado por grandes árvores e cascatas no jardim. Mora mal, a Dona Maria. É assim com o agraciado povo de Tibagi.
Rafting no Rio Tibagi
O Rio Tibagi passa entrelaçando a cintura da cidade homônima, suas águas há pouco tempo serviam de palco para o treinamento da Seleção Brasileira de Canoagem. Então, por que não se jogar por ali num barco inflável, remando correnteza abaixo? Foi o que fez conosco a Tibagi Aventuras. Entramos na Kombi preta e partimos sacolejando para encarar as corredeiras, claro, com direito a muita adrenalina e um final apoteótico, deixando o corpo boiar levado pelo leito caramelizado do rio.
Mas era feriadão de Carnaval em Tibagi. O pau estava comendo na praça central. Uma matinê infantil aquecia a chegada da noite na quermesse agitada, com direito a show do Patati e Patatá cover. Barracas com comida gorda incrível, quiosques de caipirosca em balde e, obviamente, chope gelado. Encharcados e cuspindo água das botas, ficamos por ali aproveitando uma inusitada e inesquecível Festa de Momo. Afinal, o legal é contar histórias de enredos incomuns, e nesse quesito, o Carnaval de Tibagi põe o carioca no bolso.
Viagem ao centro da terra
Que aficionado por mapas nunca quis acordar pra vida num conto do Julio Verne? Pois então, em Tibagi é possível sentir esse gostinho. Recém descoberta – há coisa de uns cinco anos no máximo – a “Fenda do Nick” é uma fantástica falha geológica com mais de um quilômetro de extensão e um metro e meio de largura. Um corredor verde, úmido e rochoso; um solo amolecido com cheiro de mata nativa, numa hipérbole geográfica: a fronteira entre a crosta Terrestre e o manto, onde as pedras suam o calor do magma.
Pelo aumento gradual de sua profundidade, foi necessário dividi-la em três níveis, sendo que os dois primeiros são percorridos a pé e o terceiro, bom, o terceiro é o mais interessante: 55 metros, 18 andares, pra descer amarrado a uma corda, com os pés nos paredões lisos; sentado do ar, praticando o que certamente é um dos rapéis mais incríveis e únicos do mundo. Em TIBAGI, filhão.
Mas por que um nome meio estrangeiro pra fenda? Convenhamos, o nome não é dos melhores, mas o significado dele mata essa questão. Sabe quando a vacina leva o nome do cientista? Quando o invento é batizado com o sobrenome do inventor narcisista? A Fenda do Nick leva o nome do seu desbravador, nada mais justo. Contudo, não, ele não é um australiano ruivo com um chapéu esquisito, nem mesmo um ianque com sede por ouro, louco para roubar uma riqueza ancestral latina e expô-la no Museu de Ciências Naturais de Nova York.
Nick foi o indomável, bravo e destemido cãozinho que acabou caindo na fenda. Sucumbiu em nome da arqueologia, geologia, ou da bela chance que temos hoje de “rapelar” por aqui; quase esmagados pela estreita abertura dos generosos movimentos tectônicos que vieram passar um feriado em Tibagi e acabaram deixando marcas eternas no solo sagrado do Guartelá.
Colônia Witmarsum – município de Palmeira – PR
A família mais rica do mundo
No quarto quilômetro da Avenida Santa Lúcia, na parte de lá, onde o calçamento não vence o pó, há uma casa antiga e simples e de pintura morta. No terreno comprido, que não carece de muros, havia um velho galpão de madeira, hoje tem um sonho real: uma pequena agroindústria concretada de paredes branquíssimas. Lá a cana-de-açúcar vira melado nos gamelões de aço que ardem o rabo nas fornalhas. Ao largo daquela terra o galo canta para o seu harém de galinhas todos os dias, é a serenata matinal das 5 da manhã. Ali os porcos gordos grunhem e as vacas leiteiras espirram seu elixir de vida pra dentro do balde de alumínio ao massagear de suas tetas veiúdas. Há mandioca. Alface. Tomate. Vagem. Pepino que vira conserva. Banana. Limão. E variedades vegetais e frutíferas suficientes para abastecer qualquer supermercado de médio porte. Tudo que uma família precisa para si e seus queridos amigos.
Eu tenho um amigo lá em Muçum. Onde o Judas foi cavalgar e se perdeu com botas, cavalo e tudo, na linha que leva aos gigantescos viadutos que deslizam vagões de trem. Lá no quarto quilômetro da Avenida Santa Lúcia moram os Brandão. A raça pura do campo, a família do meu amigo Marciano. É, só podia ser gente de outro mundo mesmo. Chegar até lá é fácil, basta ter um bom coração. Dizem, gente do bem atrai gente do bem. Então é só aquecer o coração, cruzar a rodovia e ir. Vá indo reto, “toda a vida reto” até a estrada ficar lazarenta, até o verde ficar mais verde, até o humano ficar mais humano. Aí você desliga o ar condicionado do carro e respira o ar do paraíso naquela colônia ermitã. Abre a janela e começa a distribuir acenos de bom dia, boa tarde ou boa noite, pras almas daquela comunidade reunida nas varandas para um mate amargo, uma boa prosa ou para só ver o movimento tímido passar por suas janelas na companhia dos grilos e das estrelas. – Não se esqueça, forasteiro, é preciso lançar sorrisos e cumprimentos ao longo da peregrinação.
Sábado sim, sábado não, Marciano roça a grama verde no entorno da casa e de sua agroindústria do melado. Sua irmã se casou e foi para a cidade grande. Agora ele vive com os pais e tem uma namorada. Há um ano o trem me atropelou dos trilhos que passam acima de seu terreno e me fez rolar lavoura abaixo. Tive a sorte de bater com a cara na porta dos Brandão. Eu estava sujo, caía uma chuva dos diabos. Eles me deram água gelada e pipoca doce. Hoje de manhã eu acordei em minha barraca fincada em seu quintal e senti o cheiro do café saindo do bule, e das lascas de polenta fumegando na chapa do fogão à lenha. Comi queijo de colono com melado e polenta, e broas e pão caseiro e o gosto daquela terra. Mamei da vaca em uma caneca. Era o ápice.
No almoço de domingo o churrasco estava na mesa. Partes carneadas de uma vaquinha que ficou na engorda e que agora nos alimentava com suculentos e macios cortes. Tomamos cerveja. Muita cerveja. Como se nos víssemos todos os dias. Como se fossemos vizinhos de varanda campeira. Como se o chimarrão fosse um ritual de agendamento dispensável aos pores do sol ferrugem de um céu quase sem nuvens. Estar na companhia daquela gente nobre transformava minha estirpe. Falávamos errado, carregávamos o sotaque e ríamos deliberadamente das histórias exageradas que o meio do mato inventa. Gozamos de inocência, coexistimos em amor. Eu estava na companhia de seres supremos. Seres desprendidos da sociedade. Habitava ali um modo de vida que os tornou inigualáveis. Autossuficientes. Marciano e a família Brandão venceram o sistema. Seu tudo vinha do solo da Terra. Tudo! Eles nunca iam ao supermercado. E quem precisa comprar algo? E quem precisa ir ao supermercado quando se consegue dar amor a completos estranhos?