Turismo rural agrega valor à hospedagem em Santa Catarina

Fonte: Diário Catarinense

Assim que se chega a alguma das propriedades da Acolhida na Colônia, localizadas em sítios espalhados por 20 municípios do interior de Santa Catarina, os turistas costumam ser recepcionados com apertos de mão. Quem os recebe são membros de algumas das 120 famílias de pequenos agricultores catarinenses integrantes do programa focado no turismo de experiência.

Na sequência dos cumprimentos iniciais, os anfitriões convidam os hóspedes para entrar em suas próprias casas, onde a oferta inicial costuma ser uma bebida quente, normalmente café, chá ou chimarrão, à beira do fogão à lenha. Criada em 1999, a proposta torna-se alternativa tão ou mais hospitaleira do que aquela oferecida por hotéis quase sempre lotados no Estado — a exemplo do que se vê na Serra catarinense desde março e que deve prolongar-se até quando houver frio —, já que cresce em número de participantes e, consequentemente, de adeptos ao agroturismo.

Depois de se conhecerem, acolhedor e acolhido conversam sobre o que a localidade tem a oferecer durante a estada — sempre respeitando a rotina de quem vive no campo. Há opções de passeios de trator pelo entorno da propriedade, cavalgadas, roteiros a serem percorridos de bicicletas, trilhas por cachoeiras, tirolesa que atravessa descampados, colheita de pinhão ou outras culturas. A programação também pode ser mais simples: alimentar os animais ou colher frutas do pé. Basta que o turista esteja disposto a conhecer o local a partir da vivência de quem é dali.

Entre as atividades, estão previstas pausas para recarregar as energias ao longo de todo o dia, mais especificamente com cafés da manhã, almoços e jantas produzidos quase que totalmente com produtos extraídos da fazenda. No menu caseiro, é possível escolher leite ordenhado diretamente da vaca; queijo produzido do mesmo insumo; pão caseiro; arroz e feijão plantados e colhidos do quintal, de onde também vem todos os temperos; além da linguiça feita a partir da criação de porcos, que convivem com o gado e as aves que serão igualmente carneados para consumo próprio e de quem mais chegar.

A troca é mútua. Os hóspedes que optam por esse tipo de experiência — cunhada de slow travel pela ONG francesa Accueil Paysan, de onde veio a inspiração para o programa Acolhida na Colônia — também deixam as próprias vivências, além dos valores correspondentes às diárias, que variam entre R$ 100 e R$ 150 por pessoa e, geralmente, são em esquema de pensão completa (que inclui todas as refeições). Levam o conhecimento do campo, além dos produtos orgânicos adquiridos diretamente de quem produz, e também deixam os ensinamentos da cidade. Ao final da estadia, não há mais distinção entre agricultor e turista: são amigos, que se despedem com um abraço capaz de expressar o desejo de um breve reencontro.

Para esta reportagem, repórter, fotógrafa e motorista do Diário Catarinense hospedaram-se em uma propriedade integrante do programa em Urubici, a Pousada Encantos da Natureza, e também visitaram outras duas localidades, cuja recepção aconchegante repete-se graças à simplicidade, generosidade e capacitações constantes com a equipe técnica do projeto, que hoje é uma associação de agricultores com vistas de expansão para São Paulo e Rio de Janeiro, já que cerca de 100 municípios também querem fazer parte. A experiência é narrada nos próximos textos.

Vivência rural aliada à preservação da natureza

Quem se hospeda em alguma propriedade da Acolhida na Colônia, dificilmente sai dali para ‘turistar’, por mais que em alguns do municípios existam pontos de interesse, como na Serra de Santa Catarina. Para quem procura essa proposta, o grande atrativo parece ser mesmo a convivência. A dona Valsíria Kuhnen Ribeiro, 55, está acostumada à lida e também à conversa. Acorda antes das 7h da manhã para preparar o café da manhã dos visitantes e só vai dormir quando eles também deixam o espaço destinado ao refeitório e rumam para os quartos.

— A gente cansa um pouco, né? Mas tudo é gratificante. O serviço é bastante, mas a gente tá acostumado a fazer. O bom mesmo é o bate-papo. Eu proseio menos com o pessoal, porque eu trabalho na cozinha. A Vanessa e o Zé [filha e marido], na parte da hospedagem, eles têm mais tempo. Eles ficam livres para fazer esse trabalho, para recepcionar, mas aí depois que eu sirvo a janta é a hora que eu consigo prosear um pouco. Ou eles [hóspedes] levantam para a cozinha para prosear comigo. Já acostumei a fazer comida trocando ideia — conta dona Valsíria, que antes de ingressar no turismo, trabalhava como costureira na cidade.

A empresária de São Paulo, Cecília Battistuzzo, 57, é uma das turistas que aproveita a acolhida de Valsíria e de seu José Natalino Ribeiro, 56, que mantêm o sítio aberto para a vivência rural desde 2008. Em dois anos, já visitou três vezes a propriedade, desde que a prima de uma amiga indicou o local. Por mais que possa pagar, descarta o modelo tradicional de hospedagem, presente em cerca de 5 mil leitos em hotéis da região, para ter a hospitalidade do campo.

— As pessoas, o modus vivendi, e tudo o que eu aprendo aqui é realmente incrível. Hoje, eles já sabem do que eu gosto e tentam preparar. Eles fazem o possível para que eu me sinta em casa e, de fato, eu me sinto. Sempre que eu posso, eu dou uma escapada, nem que seja para ficar um dia. Já que a gente mora em São Paulo e a vida é bastante corrida — opina.

Para Cecília, outro grande atrativo é a mesa farta que vem do quintal dos agricultores. Por esse motivo, os proprietários cultivam uma relação que prima pela preservação do meio ambiente. Afinal, é de onde tiram o próprio sustento, tanto pela agropecuária, quanto pelo agroturismo. A Pousada Encantos da Natureza, por exemplo, está assentada em um dos pontos de recarga do Aquífero Guarani — tanto que tem mais de 10 cachoeiras no entorno.

Consequentemente, já recebeu a visita de pesquisadores que ofereceram capacitações em torno das tecnologias sociais para gestão da água. O local também integra o projeto Araucária+, da Fundação Certi e da Fundação Boticário, que privilegia a produção de pinhão e erva-mate com menor impacto ambiental.

Além de gerar renda, dona Paulina atualmente tem três funcionários empregadas na pousada Lenha no FogoFoto: Betina Humeres / Agencia RBS

Experiência acessível, que empodera economicamente o agricultor

A vida da ex-agricultora Paulina Pickler Stange, 56, divide-se entre antes e depois do asfaltamento da SC-370, que liga Urubici a Braço do Norte. A empresária possui a pousada rural Lenha no Fogo às margens da rodovia estadual que, depois da pavimentação, fez aumentar em muito o movimento, segundo os moradores da comunidade Santa Tereza. À época, em 2010, o negócio era composto somente por um espaço onde, até hoje, é servido um café colonial. Até que a senhora conheceu a Acolhida na Colônia.

— A gente vai ficando mais velha, aí fica mais difícil trabalhar na roça, né? E aí a gente resolveu abrir o café e fomos aumentando aos poucos. Ela fez faculdade de administração e o professor sempre dizia que ia passar a estrada aqui e que não ia ter nenhum café, nenhuma parada para os turistas. Abrimos para 15 pessoas, mas hoje atendemos 40 e às vezes fica pequeno — conta a mulher.

Graças aos incentivos econômicos, a associação possibilitou-a receber turistas também para dormir — demanda latente em uma região que recebe pelo menos o triplo do número de leitos em visitantes a cada inverno.

— Com os empréstimos do programa e também do SC Rural, fui construindo um chalé a cada ano. Hoje são cinco e, aos finais de semana, estão sempre cheios. Nos feriados, então, nem se fala. Tudo isso faz com que hoje eu dê empregos. E também faz com que os filhos fiquem aqui, que é melhor do que um emprego na cidade — comemora Paulina, que cobra R$ 180 pela diária para o casal, com café da manhã incluído.

Apesar do contorno mais sofisticado da propriedade, cuja cabana “presidencial” tem até banheira de hidromassagem com vista para uma floresta de araucária, a essência do programa é mantida por meio da hospitalidade. Paulina tem a própria casa ao lado das suítes que reserva para turistas de todo o país e até do mundo, como os que vêm com frequência da Noruega, como ela mesma conta, o que faz com que o convívio entre camponeses e turistas seja bastante próximo.

Dona Terezinha cozinha para os visitantes no Sítio Arroio da SerraFoto: Betina Humeres / Agencia RBS

 

Vivência no campo é revalorizada

Quando decidiu receber turistas na própria casa, no Sítio Arroio da Serra, em Urubici, a agricultora Terezinha Israel de Souza, 60 anos, disse ao irmão que não ofereceria almoço, nem janta aos hóspedes. Preparava somente o café da manhã, porque acreditava que sua própria comida, que considera simples, não agradaria os visitantes. Em uma oportunidade ainda em 2009, quando não teve como escapar da pressão dos convidados que enxergavam ao mesmo tempo a horta de produtos orgânicos e o fogão à lenha, perguntou se o cardápio poderia ser arroz, feijão, paçoca de pinhão e carne ensopada. A resposta, em uníssono, foi afirmativa: “é claro, dona Terezinha, é isso que a gente quer comer aqui”. Depois desse episódio, Terezinha nunca mais parou de cozinhar para quem chega à pousada rural e, quase que imediatamente, é seduzido pelo frescor e tempero dos alimentos.

— Descobri que o que a gente faz aqui tem valor, que as pessoas vêm até aqui para comer a comida daqui, viver o que é daqui — diz.

Atualmente responsável pela administração da propriedade, Dilmo Israel, 51 anos, endossa a percepção da irmã. Para o empresário, que deixou o sítio para viver no Centro de Urubici, o legado mais importante da Acolhida na Colônia consiste no aumento da autoestima entre aqueles que vivem no campo.

— [O programa] incute em nós a ideia de que o espaço que a gente tem é realmente legal, o tipo de comida que a gente faz é bom, e mostra que o estilo de vida é diferente, mas que tem valor, tanto que faz as pessoas virem. Muitas vezes, a gente se perguntava: mas quem vai vir para o mato? E aí quando começam a vir as pessoas de fora e dizer que estão aqui para comer o bolo de coração, que se fosse para comer pizza, comia do lado de casa, a gente começa a mudar a perspectiva — avalia.

Dilmo também valoriza o empoderamento, principalmente por meio do conhecimento adquirido a partir dos visitantes.

— A Acolhida mostrou que a gente tem um poder na mão, que devemos aproveitá-lo para receber as pessoas e trocar informações. Assim como nós também temos o que ensinar, eles também têm. Essa é a faculdade que a gente não conseguiu fazer. O programa preza por esse contato, por essa troca de experiências. É uma hospedagem de experiência — resume.

ENTREVISTA: “O que nos diferencia da rede hoteleira é o turismo de convivência”, diz criadora da Acolhida na Colônia

Em 1999, a agrônoma catarinense Thaise Guzzatti, 40, criava a Acolhida na Colônia. Apesar de somar 18 anos, a associação de agricultores passou a ser mais procurada recentemente, quando ganha força o turismo de experiência. Na entrevista abaixo, a criadora do programa comenta a trajetória da iniciativa, os desafios e ainda defende a vivência mútua entre quem vive na cidade e no campo. Veja:

Como surgiu a Acolhida na Colônia?
Em 1994, eu era estudante de Agronomia e tive uma experiência em um estágio obrigatório. E aí eu fui morar por um mês com uma família de Seara para conhecer os desafios da agricultura familiar, que representa 93% das propriedades em SC. Foi um choque de realidade. Eles eram extremamente empobrecidos, tinham um trabalho árduo, quase não eram remunerados. A comunidade rural tinha infraestrutura precária. O sonho deles era ir embora dali. Uma realidade triste, mas que também me encantou com a vida deles, o trabalho coletivo em família, a vivência com o meio natural e o acolhimento. Eles não ganharam nada com o estágio, mas abriram a casa e me deram o melhor quarto. A gente vive em um mundo urbano tão frio, cada um no seu apartamento, enquanto lá tem um acolhimento tão caloroso. Quando voltei do estágio, comecei a procurar atividades que pudessem ajudá-los. E aí alguém me falou do turismo rural.

É nessa parte que entra a inspiração na França?
Sim. Me disseram que lá as pessoas da cidade iam conhecer o campo, que tem uma valorização, que é uma atividade de renda. Tive um estalo: putz, é isso! E aí peguei a mala e fui para a França conhecer iniciativas de turismo rural, que existem desde a década de 50, pós Segunda Guerra, como política pública, super incentivadas, com recursos e apoio do governo — uma realidade muito diferente da nossa, que tivemos que chegar na porta do agricultor e pegá-lo pela mão, inicialmente de forma independente do Estado. Até que eu cheguei nessa associação, que chama Accueil Paysan. O que foi legal é que eu vi agricultores pequenininhos que achavam que o turismo era uma forma de fazer a agricultura familiar não acabar. E isso não tem como acontecer se não for fazendo uma aliança com o urbano. Conheci os critérios de lá e, quando voltei para cá, comecei a procurar um lugar para começar um projeto-piloto e tentar montar alguma coisa. Voltei para o Oeste, que era onde eu conhecia. Era uma realidade completamente diferente do que é hoje, sem asfalto, sem hotel, sem restaurante. Ninguém nunca imaginou que pudesse ter algo de turismo. As pessoas riam da gente. Os que começaram a gente pode dizer que eram agricultores muito empreendedores, muito corajosos. Nós também dizíamos para o turista: você tem que estar disposto a colocar teu carro numa estrada ruim, a ter que parar e perguntar onde é, não vai ter tanto conforto assim, mas vai valer a pena. Cada turista que ia era um discurso de preparação para conscientizar de que essa pessoa estava ajudando a construir isso. Quem chega hoje, é outra história, tanto para o agricultor quanto para o turista.

São 18 anos de história e parece que bastante coisa mudou. De que forma a iniciativa está presente no Estado hoje?
A associação se fortaleceu ao longo dos anos, mas ainda há um caminho pela frente. Tem uma demanda enorme no Estado inteiro, há 100 municípios do Estado e do país, do Rio de Janeiro e de São Paulo, querendo fazer parte também. Existe muita gente do meio urbano que quer fazer esse tipo de turismo, mas a gente tem muita dificuldade pela infraestrutura dos municípios. Agora, por exemplo, nós estamos usando dinheiro que nem temos para fazer placa de sinalização das cidades. Em contrapartida, o projeto SC Rural, do governo do Estado, mudou a nossa vida ao melhorar a qualidade das propriedades. A Acolhida não é uma empresa, mas uma associação de agricultores. Seria interessante que o Estado também assumisse esse trabalho de orientação técnica e de apoio para que o turismo do interior deixasse completamente de ser invisível. Enquanto política de turismo, ainda somos pouco vistos. Precisamos do apoio de empresas catarinenses em torno desse programa social, para permitir que agricultores continuem dinamizando as suas próprias comunidades.

A Serra é muito procurada nesta época do ano. Essa é uma alternativa aos leitos escassos da região?
É uma outra proposta de hospedagem. Eu me atreveria a dizer que é tendência, inclusive. Nesse momento, o que é a revolução no turismo? É o Airbnb. A proposta deles é o turismo de experiência, de ficar no sofá de alguém. Hoje, o turista pede outro tipo de relação, em que você possa conversar com a pessoa que te recebe, dar sugestões, descobrir, olhar a cidade a partir de uma pessoa do local, sem padrão. A Acolhida na Colônia vai por esse sentido. É um turismo de mais conteúdo, de experiência, de você mergulhar de alguma forma na história de uma família e de um lugar. É claro que a gente se aproveita da estação de inverno, já estamos no mapa de turismo. Mas o que nos diferencia da rede hoteleira é esse turismo de convivência, menos o frio pelo frio.

Essa é uma forma de eles se empoderarem economicamente e permanecerem no campo?
Sem dúvida. Antes do turismo, o campo estava ficando esvaziado. A parceria da cidade com o campo é o potencial transformador desse projeto, para que as coisas continuem. Primeiro, há a geração de renda pelo turismo. Segundo, com a venda de produtos orgânicos, que todo mundo compra, se tem para vender. Terceiro, o agricultor não dá conta de produzir tudo o que ele precisa, então ele acaba comprando do vizinho. E o quarto é que muitos precisam contratar mão de obra para ajudar no fim de semana. Dinamiza a economia do local e do entorno.

De que forma a associação valoriza a vida no campo?
O maior resultado desse projeto para as famílias é a autoestima. Os filhos que cresceram ao longo desse projeto querem ser agricultores quando crescer. Isso é a revolução. A gente não valoriza aquilo que a gente não conhece. A gente até conhece, lê e fala sobre a vida no campo, mas vivenciar é diferente. Quando você vai a casa de um agricultor e passa um dia com ele, e ele te mostra quanto trabalho dá para produzir orgânicos, ou se você experimenta carpir a tarde inteira um canteiro de alface em vez de aplicar agrotóxicos, você entende. A possibilidade de viver, de conversar com o agricultor é muito legal. Estar em contato com a natureza, comer a comidinha do agricultor, é um outro tipo de turismo. É parar, slow travel. As pessoas que conseguem fazer agroturismo estão sendo modificadas. O agricultor precisa do turismo para se desenvolver.

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