Aparados da Serra: um roteiro pelos grandes cânions brasileiros

CAMBARÁ DO SUL – Quem chega a Cambará do Sul, quase nem se dá conta do gigantismo que se esconde perto dali. Com menos de sete mil habitantes e casario feito de madeira de araucária em ruas estreitas de paralelepípedos, a cidade do Rio Grande do Sul, a 180km de Porto Alegre, parece estar num eterno domingo. Mas, basta seguir por estradas de terra que cruzam propriedades rurais, para um mundo monumental se abrir a seus pés.

Na região dos Aparados da Serra, conhecida como a Terra dos Cânions, a cidade é porta de entrada para uma extensa cadeia de 250km de bordas, sobre dezenas de cânions que rasgam montanhas até o estado vizinho de Santa Catarina, no maior conjunto de formações do gênero da América do Sul.

Do alto, em mirantes que flutuam sobre fendas profundas, das quais mal se pode ver o fim, o cenário é impactante. Abaixo, nas trilhas interiores em águas que seguem abrindo caminho, a experiência é monumental.

Como se tivesse sido aparada por facões — saiu daí o nome da região —, aquela planície elevada sustenta imensas ranhuras naturais sobre gargantas que despencam do alto dos Campos de Cima da Serra; e observa cachoeiras escorrerem por paredões verticais de até 900 metros de altura, antes de se esconderem em veios de rocha basáltica, que terminam em rios mansos.

É como voltar 130 milhões de anos, quando a separação dos continentes e os constantes derrames de lavas deram origem ao que se chama hoje de planalto vulcânico da Serra Geral, no extremo nordeste do Rio Grande do Sul. Em outras palavras, ali está um dos cenários mais exclusivos e desconhecidos do país.

Turismo em crescimento

Cambará do Sul é um dos poucos municípios brasileiros que têm a sorte de abrigar dois parques nacionais — o de Aparados da Serra e o da Serra Geral —, uma região de Mata Atlântica e de florestas de araucárias. Os dois parques se estendem até Santa Catarina.

A região dos Aparados inclui as cidades de Vacaria, Bom Jesus e São José dos Ausentes, declarada o ponto mais alto do Rio Grande do Sul (o Pico do Monte Negro, no cânion Monte Negro, a 1.403 metros de altitude). E entre araucárias gigantes e gargantas profundas, o turismo na Terra dos Cânions começa a dar passos largos.

Por dentro dos cânions, em mirantes e cachoeiras
Cachoeira do Tigre Preto, na Trilha da Pedra do Segredo, no Cânion Fortaleza, na Parque Nacional da Serra Geral – Eduardo Vessoni
Criado em 1959, o Parque Nacional de Aparados da Serra é uma área de mais de 23 mil hectares que tem o Cânion Itaimbezinho como principal atração. Para ver aquele conjunto de pedras afiadas, como sugere seu nome, em tupi-guarani, o parque conta com duas trilhas fáceis que margeiam as bordas do cânion.

A Trilha do Vértice (que tem 1,5km de extensão) oferece diferentes pontos de vista daquelas fissuras rochosas, por onde caem as principais cachoeiras do Itambezinho: Andorinhas e Véu de Noiva, quedas de cerca de 200 e 480 metros de altura, respectivamente, dando origem ao Rio do Boi, no interior do cânion.

Mais longa e também com baixo nível de dificuldade, a Trilha do Cotovelo tem seis quilômetros (ida e volta) e começa em uma área de mata de araucária que se abre em desfiladeiros do Itaimbezinho que podem ser vistos sobre mirantes de madeira.

A 18km de Cambará, por estrada de terra, e com melhor estrutura para os visitantes, o parque é o mais famoso e antigo da região. Momentaneamente, o ingresso para visitantes, que seria de R$ 8, não está sendo cobrado, devido a entraves entre o governo e os administradores da unidade.

Até 2km de uma borda a outra

E, se aqueles campos superiores têm mania de grandeza, nada como ampliar nosso campo de visão e dar lugar a mais um parque nacional. Funcionando há exatamente 25 anos, o Parque Nacional da Serra Geral é um guardião que se eleva entre paredes verticais que formam o Fortaleza, o cânion mais imponente da região.

Sem nenhuma infraestrutura, exceto banheiros na guarita simples da entrada, o parque pode ser explorado em trilhas mais abertas, em campos de vegetação rasteira que permitem vistas panorâmicas não só do Fortaleza, como do litoral gaúcho.

Nos Aparados da Serra, cânions ocultam mas também revelam paisagens que a gente não cansa de querer ver de novo. Com 17.300 hectares, o parque da Serra Geral, a pouco mais de 20km de Cambará, pode ser explorado na Trilha do Mirante, que leva ao topo do Morro Fortaleza, uma rampa natural de onde se vê o ponto com maior distância entre uma borda e outra do cânion, uma fenda de cerca de dois mil metros de extensão.

E se já não bastasse visualizar quase 95% de cânion, nessa caminhada de 3,4km (ida e volta), o parque abriga também a Pedra do Segredo, uma trilha de 2,4km que termina em um mirante improvisado, com vista para a imensa pedra que se equilibra, misteriosamente, sobre uma base estreita de poucos centímetros.

Visitante observa de perto as quedas d’água da Cachoeira do Tigre Preto, na Trilha da Pedra do Segredo, no Cânion Fortaleza – Eduardo Vessoni

Mas o mais impactante continua sendo a travessia sobre o rio que forma a Cachoeira do Tigre Preto, uma sequência de quedas paralelas com mais de 400 metros de altura que o visitante cruza por cima, antes de vê-las de frente. Juntos, esses dois parques nacionais abrangem mais de 30 mil hectares de área preservada.

Antiga rota de tropeiros que, sobre mulas e cavalos, garantiam o comércio entre as cidades serranas, o destino é rodeado de lendas. Dizem que os índios Xokleng de Santa Catarina, conhecidos pela crença na existência de espíritos que moravam na natureza, começaram a se dar conta do desaparecimento de animais como porcos e galinhas, que creditavam a um vulto negro que viam passar à noite.

A história daria nome a uma das experiências mais cenográficas de toda a região: a Trilha do Tigre Preto, em referência ao suposto animal ladrão. Com 18km de extensão, essa caminhada passa por área selvagem do interior do Cânion Fortaleza, margeando as águas do Rio Tigre Preto.

Piscinas em área menos radical

Para descer a níveis mais profundos, a terras onde a maioria dos visitantes só conhece por cima, é preciso seguir pela Serra do Faxinal, em direção à Praia Grande, já em território catarinense. É em Jacinto Machado, a 80km de Cambará do Sul, que tem início essa trilha, a menos explorada com fins turísticos.

— É uma caminhada mais técnica, em que se anda sobre pedras e que exige diversas travessias de rio —, descreve o guia Roni Bitencourt.

E só em um setor tão isolado e profundo pra gente entender por que o Fortaleza é o cânion mais largo (são 7,5km de extensão) e mais profundo (até 900m de altura). Conhecida por ter as vistas mais amplas dos paredões dos cânions, a trilha é uma das rotas abertas recentemente para o turismo e é ainda uma das experiências mais exclusivas do destino.

E o tal sumiço de animais também deu origem ao nome de outra trilha bem puxada, no interior do Itaimbezinho: a do Rio do Boi.

Dizem que não era raro ver animais despencarem do alto desse cânion, no Parque Nacional de Aparados da Serra. Eles seriam vítimas da baixa visibilidade causada pela neblina local.

A caminhada, com pouco mais de oito quilômetros, oficialmente, pode chegar a 12km, segundo guias locais. Durante a travessia por dentro do cânion, os caminhantes fazem diferentes travessias de rio e passam por algumas cachoeiras que deságuam em poços, perfeitas piscinas naturais.

E, atenção, ambas caminhadas interiores são exigentes e requerem contratação de guias credenciados.

Para mais atividades em níveis que sejam menos radicais, a região é conhecida também pelas piscinas do Cânion Malacara, que podem ser visitadas para banhos, em uma caminhada de 6km (ida e volta) pelo interior do cânion, no Serra Geral.

Turismo rural, cervejas artesanais e hospedagem

Na Fazenda Macanuda, em Cambará do Sul, é possível visitar produção de legumes e frutas para antepastos e geleias – Eduardo Vessoni

De volta ao centro de Cambará do Sul, o turismo assume outro ritmo. Entre as opções oferecidas pela cidade ao visitante estão bons restaurantes e até mesmo cervejaria com bebidas artesanais, que são feitas com água dos cânions.

Para o almoço, tente o clássico Casarão, no Centro, que funciona há 14 anos em uma casa de madeira, equipada com fogão a lenha e lareira. O buffet de pratos frios com ingredientes orgânicos acompanha um rodízio de trutas (R$ 71 por pessoa) ou de galetos (R$ 55). Há molhos de alcaparras, amêndoas, vinho gengibre ou mostarda.

Cambará ainda tenta mudar sua imagem conservadora e atrair um público mais jovem com suas atrações de aventura, mas certos endereços locais fazem questão de manter as tradições, como o Artesanato Kanto Kente, onde uma roca de fiar prepara a lã de carneiro para a produção de cobertores, tapetes e peças de vestuário. O local é um dos endereços do projeto Quintais de Cambará do Sul, roteiro que integra experiências em estabelecimentos rurais, como pescaria, trilhas em áreas particulares e degustação de orgânicos.

À tarde, não perca o pôr do sol na cenográfica fazenda Macanuda (saboresdaquerencia.com.br), propriedade rural do casal Vico e Cláudia, que produz geleias artesanais com frutas vermelhas do próprio quintal. Em média, o pote de 260 gramas sai a R$ 23.

Bate e volta pela região

As diferenças climáticas durante o dia, nesse microclima local, favorecem a produção de cinco mil quilos anuais de frutas como amora, mirtilo, físalis e framboesa. Para ver os pés carregados, vale visitar a fazenda entre os meses de novembro e fevereiro, quando acontece a colheita das frutas. Destaques para as geleias de gengibre, manjericão, pimenta e alecrim. Todas elas têm com base de suco de maçã. Também merecem atenção antepastos de berinjela, abobrinha ou pimentão vermelho.

Para a noite, a opção está no primeiro pub aberto em Cambará, a Cervejaria Du Perau. A pegada roqueira está não só na decoração das paredes, com pôsteres e vinis, mas também na seleção cuidadosa do proprietário Rodrigo Valim, responsável pela trilha que inclui Pink Floyd e Led Zeppelin.

— A cidade não tinha nada com a cara dos jovens locais — explica Valim, que trabalha nesse estabelecimento familiar, ao lado de duas irmãs e de uma tia.

No Passo do S, o visitante atravessa de carro 80 metros de rio – Eduardo Vessoni

Mas a melhor pedida é a Grota Bier, cerveja em versões IPA, Red e Stout (a partir de R$ 10), feita com águas que correm pelos cânions dos Aparados e chegam à estação de tratamento, em Praia Grande (Santa Catarina). Para acompanhar, o prato mais pedido é o hambúrguer tropeiro (R$ 23), feito com linguiça, queijo colonial, rúcula, tomate e batata rústica, em pão da casa.

Localizada nos Campos de Cima da Serra, a região dos Aparados é um roteiro que inclui outros municípios gaúchos que merecem um bate e volta de um dia. As opções de atividades seguem o ritmo aventureiro e de vida ao ar livre de Cambará.

A quase 40 quilômetros dali, fica a vizinha Jaquirana, que abriga o Circuito das Águas, em roteiro que inclui a Cachoeira dos Venâncios, alimentada pelo Rio Camisas. Esse conjunto de quedas d’água está em área particular, e Venâncios é tida como uma das mais belas da região.

A cidade se destaca também pelo inusitado Passo do S, circuito sobre um lajedo do Rio Tainhas, em que o visitante cruza de carro 80 metros sobre aquelas águas rasas até a outra margem, onde começa uma trilha fácil, que leva à imponente Cachoeira do Passo do S, no Parque Estadual do Tainhas. Em antiga área de passagem de tropeiros, a atração tem quedas fortes de até 20m de altura, mas sem área para banho.

Já a 70km de Cambará, a pacata São Francisco de Paula é ponto de partida de outro endereço do Circuito das Águas: o Passo da Ilha, que funciona como o Passo do S, uma área de campos abertos que dão acesso a uma plataforma rochosa, com uma pequena ilha no meio.

Para incluir mais um cânion nesse turismo de aventura, São Chico, como a cidade é conhecida, abriga o inexplorado Josafaz, cujos 16km de extensão lhe renderam o título de “maior cânion de Aparados da Serra” e podem ser percorridos em trilhas com acampamento local.

A aconchegante sala de estar da Pousada do Engenho, em São Francisco de Paula, na região dos Aparados da Serra– Eduardo Vessoni

E sabe aquele lugarzinho perfeito para desconectar do mundo lá fora, mesmo depois de uma trilha intensa por cânions? Para quem fica por ali, a Pousada do Engenho é uma área de 2,8 (cenográficos) hectares, em meio à mata de araucárias e xaxins, de onde saem os pinhões usados na culinária caprichada de seu restaurante. Equipado com uma casa na árvore para jantares a dois, o hotel se destaca pela nova Cabana 15, uma construção high tech de 170 metros quadrados, com luzes e aparelhos operados pelos hóspedes, via tablet.

Até porque, fazer turismo naquelas terras frias e de paredões verticais, nem sempre de fácil acesso, não precisa ser uma experiência de perrengues. Embora ainda conte com pouca estrutura turística e ofereça atrações vinculadas exclusivamente aos cânions, Cambará do Sul é endereço de alguns dos hotéis mais charmosos do Brasil.

A 9km do Cânion Itaimbezinho, o Parador Casa da Montanha tem 19 barracas térmicas de lona canadense sobre palafitas, em um vale com mata de araucárias cortado pelo Rio Camarinhas. Um bom lugar para instalar construções rústicas. Inspirado no conceito de aventura com conforto dos lodges africanos, o hotel conta com três opções de hospedagem. Os quartos foram erguidos a partir de pedras de basalto e madeira de pinos.

Temperatura controlada

As camas são equipadas com lençóis térmicos. O próprio hóspede pode controlar a temperatura e as varandas das suítes contam com jacuzzi de água quente. O chá da tarde, servido no restaurante, é feito em um fogão antigo, inclui geleias artesanais e waffles. Acontece diariamente durante a Cerimônia do Pôr do Sol, às 17h30.

Na sequência, às terças e sextas, é oferecido fondue, com queijo gruyère e cordeiro, em um rechaud sobre a mesa, em que o comensal dá seu ponto preferido aos ingredientes. Recentemente, o lugar inaugurou um SPA, em parceria com a L’Occitane.

SERVIÇO

ONDE FICAR

Parador Casa da Montanha. Membro da associação Roteiros de Charme, hotel em Cambará do Sul tem três opções de hospedagem: de barracas térmicas com banheiro externo até suítes que mesclam os conceitos de barraca e chalé, feitas de alvenaria, lona e palha. Diárias a partir de R$ 558. paradorcasadamontanha.com.br

Pousada do Engenho. Fica em São Francisco de Paula, em meio a mata de araucárias e xaxins e tem construção high tech. Diárias a partir de R$ 830. pousadadoengenho.com.br

ONDE COMER

Casarão. O restaurante, que oferece comida feita em fogão a lenha e tem lareira, está localizado na Rua Padre João Francisco Ritter 969, no Centro de Cambará do Sul. Contatos pelo telefone: (54) 3251-1711.

Cervejaria Du Perau. No primeiro pub de Cambará do Sul, um dos destaques é o hambúrguer tropeiro. Fica na Avenida Getúlio Vargas 1.249. Outras informações podem ser obtidas pelo telefone (54) 99711-4652.

PASSEIOS

Coiote Adventure. Em parceria com o Parador Casa da Montanha, oferece passeios em carros 4×4 e guias, como ao Itaimbezinho (R$ 98 por pessoa, para meio dia); piscinas do Malacara (R$ 200); e em trilhas mais puxadas (Rio do Boi, R$ 240; e Tigre Preto, R$ 350). coioteadventure.com.br

EPasseios. Faz passeio de dia inteiro pelo interior do Cânion Itaimbezinho, na Trilha do Rio do Boi. R$ 360 por pessoa, para o mínimo de dois ingressos. epasseioturismo.com

Artesanato Kanto Kente. Produção de cobertores, tapetes e peças de vestuário. Fica na Avenida Getúlio Vargas 1.527, Centro de Cambará do Sul. Telefone: (54) 3251-1113.

Fazenda Macanuda. Propriedade rural vende geleias artesanais. Visita aos pés de frutas vermelhas entre novembro e fevereiro. O site é o saboresdaquerencia.com.br.

Projeto Quintais de Cambará do Sul. Roteiro que integra experiências em estabelecimentos rurais, como pescaria, trilhas, entre outras. quintaisdecambara.com.br

Turismo do Rio Grande do Sul. Site do escritório de turismo do estado: turismo.rs.gov.br

Fonte: O Globo

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